Mesmo quando são casadas ou não admitem a infidelidade, amigas podem ter papel central na manutenção de relações extraconjugais
Amizade e traição: a relação extraconjugal "é um jogo em que a amiga tem papel protagonista"
Foi no dia de seu aniversário que uma gerente de marketing paulistana de 34 anos descobriu que seu namorado a traía. Não apenas tinha outra, como casou-se com a amante no mês seguinte, coisa que jamais tinha cogitado com ela apesar dos cinco anos de relacionamento. O sofrimento a traumatizou tanto que fez com que ela demorasse dois anos para conseguir se relacionar novamente com alguém. Desta vez, tudo parecia perfeito – casamento marcado, apartamento comprado e... outra amante. Flagrou o noivo com a recepcionista. Mais um período de sofrimento indescritível, nem comer conseguia. “Me machuquei muito. Perdi dez quilos em quinze dias. Era coisa de meu pai sentar e chorar comigo”, conta.
O impacto que os infiéis tiveram na vida da gerente de marketing não contaminou sua relação com as amigas. Nem com aquelas que, por alguma razão, se relacionam com homens casados. O fato de viverem um arranjo romântico em que são as “outras” não fez com que passassem a ser percebidas como ameaças à monogamia ou ao que ela acreditava em um relacionamento. Pelo contrário. A paulistana diz que uma de suas amigas é amante de um homem casado e conta com seu ombro para desabafar. “Promessa é o que não falta, e eu a vejo sofrendo. Não incentivo, digo que não acho que ele vá fazer qualquer coisa por ela. Mas, ao mesmo tempo, falo pra ela ir atrás, digo que a gente não manda no coração. Tô aqui, dou ombro”, explica.
O que parece incongruência na verdade pode ser uma complexa dinâmica de afeto. Apesar de ressaltar antes de mais nada que as mulheres, em geral, não querem para elas nem para as amigas “um homem que não seja exclusivo”, a antropóloga Mirian Goldenberg, autora de “A Outra” e “Por que homens e mulheres traem?” (ambos da edit. Best Bolso), explica que a relação extraconjugal “é um jogo em que a amiga tem um papel protagonista”. “O único apoio que a mulher tem nessa situação é a amiga. Senão, com quem vai sair, passar o Natal, o aniversário? Com um homem casado, em geral, ela tem mais presente, mais sexo, mais romance, mais atenção, mais intimidade. Mas tem menos presença. E o que falta é a amiga quem supre.”
E não é preciso ser "a favor" da traição para acabar colaborando nessa dinâmica. A representante comercial Sandra Brasil, 29, é radicalmente contra a infidelidade. Já evitou o desenvolvimento de amizades porque a pessoa namorava alguém casado ou tinha um amante. Uma de suas melhores amigas, no entanto, foi “a outra” ao longo de oito anos. Sandra manteve a amizade, mas colocou limites. “Eu a proibi de levá-lo à minha casa ou de sair com ele quando eu estivesse junto. Sou do princípio que não faço para os outros o que não gostaria que fizessem comigo, e não gostaria que ninguém recebesse meu marido com uma amante”, diz.
Mesmo deixando sua posição clara, Sandra não conseguiu ficar completamente fora da dinâmica do relacionamento da amiga. “Ela vinha chorando. Eu nunca falei, ‘ah não vou te ouvir’. Como amiga, me sentia na obrigação de ouvi-la e de dar um ombro.” E tudo isso depois do sofrimento que a própria Sandra passou envolvendo uma situação de traição. Ela terminou seu casamento por causa da suspeita (depois confirmada) de que o marido a traía. Até hoje, dois anos depois, ela conta que faz terapia para superar a dor e que não conseguiu se relacionar com mais ninguém. Se o pretendente tiver qualquer característica que lembre o ex, pior ainda. "Não tenho sorte no amor, acho que ainda vou ganhar na Mega Sena", brinca.
Casadas
Mas se amigas precisam de um ombro para complementar o que falta na vida de amante, o que as casadas ganham com esta relação? Nos estudos de Mirian, as brasileiras mostram que existe uma gradação de relacionamento ideal em que ser a outra é melhor do que estar sozinha, que por sua vez é melhor do que ser a esposa traída. Ou seja: a idealização do relacionamento é montada tendo como referência o fato de ser a única na vida de um homem. Isso explica o lado das casadas na relação com as amigas-outras: “As outras acreditam que são únicas – acham que eles não ficam mais com as esposas, que só ficam com elas. Assim, a casada não pode condenar o tempo todo porque ela estaria condenando a própria idéia de que é possível ser a única”.
Mas não é so isso. As mulheres também preferem ver as amigas se sentindo “únicas” do que sozinhas, traídas ou infelizes no casamento, diz Mirian. Quando a gerente de marketing estava em uma péssima fase, se recuperando da segunda traição e da morte do pai, foi a propria amiga-amante que a incentivou a aceitar as investidas de um homem interessante, mas casado. “Ela botou fogo para a gente ficar junto. Acabei me dando mal também. Me sentia um lixo, mas queria me encontrar com ele”, conta. Com o tempo, ela se cansou da relação e hoje tem um namorado oito anos mais novo – só dela.
O mesmo raciocíonio teve uma arquiteta de 36 anos que, aos cinco meses de gravidez, também descobriu que o marido a enganava. O casamento acabou. “Antes eu tinha preconceito em relação a isso, achava um absurdo. Julguei todas as pessoas, sofri muito. Mas agora, depois de quatro anos, não tenho o menor problema em dar um apoio a uma mulher que esteja com um homem casado ou procure uma coisa melhor fora de um casamento infeliz”, conta. “ Acho que ninguém é dono de ninguém, estão todos abertos a outras coisas. Existem coisas que podem ser mais fortes do que a gente. É quando a gente deposita nossa vida na mão do outro que eu acho da errado”. Para ela, não é porque as pessoas estão em um relacionamento que não devem “abrir os olhos, procurar coisas boas e ser feliz”.
A arquiteta, hoje solteira, diz que se vê um homem de aliança encara aquilo como uma barreira de respeito. Mas que não está livre de vir a se relacionar com um casado. Disse que apoiou as “inúmeras” amigas que já passaram por isso. Mas fez questão mesmo de falar sobre sua postura em relação a uma outra situação: a amiga infeliz no casamento que confessou ter um amante. “Fui conselheira, mostrando os dois lados. Falei para dialogar com o marido, ir a um psicólogo, mostrar as insatisfações, ser mais aberta”, conta. “Mas mesmo quando ela tentou, ele não estava aberto. Ela não procurou, surgiu essa lacuna e o barquinho dela foi indo no ritmo do rio”. Segundo a arquiteta, a vida da amiga só melhorou. “Deu uma luz, ela ficou com um brilho diferente, mais animada. E acabou melhorando o casamento dela. O marido não soube que ela traiu, mas entendeu que ela estava diferente. Por meio de um amante acabou mostrando o que não conseguia”.
A transformação da arquiteta é semelhante à explicação que a psicóloga Regina Navarro tem para a ambiguidade entre a dor das traídas e sua solidariedade com as amantes.”Estamos no meio de uma mudança de mentalidades. O amor romântico, que exige exclusividade sexual, está dando sinais de que está saindo de cena. Em toda mudança tem um período em que você vai encontrar comportamentos díspares”, diz. “A grande viagem do ser humano hoje é para dentro de si mesmo, e a construção social do amor romântico, que diz que quem transa com outro não ama, bate de frente com essa individualidade. Então, se existe esse conflito, é porque as mentalidades estão mudando.”
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